quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Chacoalhando as estruturas


O volátil século XX, que Winock elegeu como o “século dos intelectuais”, foi intensamente marcado por inúmeros agenciamentos artísticos e científicos ao redor do globo. Um deles foi o estruturalismo, que tem no belga Claude Lévi-Strauss - antropólogo que dialogou de modo eclético com a filosofia marxiana, a psicanálise e a semiologia - o seu expoente mais emblemático.

Porém, cem anos não foram suficientes: Lévi-Strauss retorna à ribalta com seu recente au revoir. Das etnografias sobre indígenas da região central do Brasil, passando pelo devir-astrônomo do antropólogo, os mitemas, a docência universitária, embates conceituais (como o pós – ou anti – estruturalismo de Foucault e Deleuze, a desconstrução de Derrida etc.), e reminiscências nostálgicas, polemizou e influenciou o âmbito polifônico das Ciências Sociais e Humanas. Após uma travessia tão extensa, nada mais justo que o descanso e o incenso. Um pensador morre fisicamente, mas suas ideias ecoam, com vitalidade, em textos que já eram clássicos para diversos ramos do saber acadêmico.

A despeito do caráter a-histórico do método estrutural, há de se lembrar também que no mesmo século XX surgia um ritmo musical selvagem em intenção, tocado (em conjunto, geralmente) por indivíduos descontentes com o status quo do segundo pós-guerra: aquele “tal de rock and roll”, então bem mais cru que cozido. O leitor pode estar se perguntando algo do tipo “que diabos Claude Lévi-Strauss teria a ver com essa música alta e seus perpretadores, sobre os quais nunca versou”? Uma resposta verossímil seria esta: o supracitado antropólogo, o rock e a juventude são agentes, respectivamente, de mudanças paradigmáticas no pensamento social, na cultura e na própria vida em sociedade; chacoalharam estruturas caducas, lançaram outras possibilidades de explicação e vivência do “estar junto”, seja na selva, seja na urbe - destacaram, pois, os sentidos do outro.

Gerado a partir de núpcias entre ritmos ditos brancos (country, folk) e negros (blues, jazz) dos EUA, o rock, este mulato indomado (que também pode ser capturado) rouba para si o conceito de bricolage de Lévi-Strauss, que agencia elementos audiovisuais diversificados numa configuração outra que os torna em algo singular, mas ainda assim, múltiplo. Isto acabou por potencializar desdobramentos ético-estéticos até então inéditos – e chocantes para a cultura do establishment, marcada pelo puritanismo dos “anos dourados”. A segregação racial entre brancos e negros foi um obstáculo que não impediu que fronteiras sociais se desterritorializassem e uma nova manifestação artística surgisse, já gritando.

A juventude, categoria até hoje complexa em sua delimitação, tornou-se objeto de maior interesse analítico para áreas como Antropologia, Sociologia e Comunicação Social justamente pelo advento do rock como fenômeno sociocultural. O embrião da contracultura se maturava, abrindo um espaço possível para a compreensão de alteridades eletrificadas pelo encantamento sônico de guitarras, contrabaixos e baterias. Finalmente os jovens tinham sua própria música, seu território existencial, sua moderna mitologia - Elvis ainda ocupa o topo deste panteão.

“A juventude é apenas uma palavra”, enunciou certa vez Bourdieu, alertando que a idade é um dado biológico que é socialmente manipulado. Uma inspiração lévi-straussiana é nítida, visto que, em sua objetividade tenciona evocar a diversidade cultural e as ligações entre seus regimes de signos numa estrutura que se (re) forma a partir de singularidades bricoláveis. Em suma, interessa às estruturas os elementos que afetam e constituem antropologicamente a tripla relação entre pensamento, ação e representação.

Independentemente do objeto de estudo – pensemos a priori numa “cultura juvenil e polissêmica alicerçada pelo rock em suas várias abordagens” aqui – há um emaranhado de leis que regem o pensamento humano e fundamentam a cultura e a mitologia; tais leis só podem ser estabelecidas pela sociabilidade, enfocada pelo “coração da Antropologia”: a pesquisa empírica, o fieldwork.

Assim, o objeto dado se dilata: há, com efeito, culturas, juventudes, rocks, estruturas menores embutidas em maiores que se encontram numa miríade ético-estética. Os estilos de rock influenciam diretamente na criação de outros estilos, mas de vida: podem-se notar em qualquer metrópole grupos juvenis que atendem pelas alcunhas coletivas de rockabillies, hippies, punks, góticos, metaleiros, skinheads, straight edges, emos etc.

Portanto, há três importantes legados que não querem calar e tampouco serem esquecidos em nossa cultura glocal: o de Claude Lévi-Strauss como um clássico da moderna Antropologia, o do multifacetado rock and roll como arte moderna e “selvagem”, e o da juventude, que adquire novos significados e valores. Que o tempo seja benevolente...

>> MÁRCIO BENEVIDES é bacharel em Comunicação Social e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará.